segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O manejo clínico diante das cirurgias reparadoras e seus preceitos éticos

Fonte: http://migre.me/hJaoi
Um dos pontos mais polêmicos que permeiam a vida de um ser intersexual, tanto em questões individuais, existenciais, de pertença e identificação como também em questões de produções de saberes, envolvendo contextos históricos, políticos e científicos, é a intervenção cirúrgica de readequação sexual nos indivíduos classificados como portadores da chamada "Anomalia de Diferenciação Sexual" (ADS).

            Para entender um pouco melhor sobre as cirurgias de readequação sexual, é bom mergulhar na história e saber quando tais práticas começaram a se fixar no meio médico. Já a partir do século XIX é possível encontrar vários registros médicos documentados sobre intersexos, que na época, a nomenclatura vigente ainda era hermafroditismo. Os avanços da medicina social foram importantes para que se ampliasse o acesso e mais pessoas procurassem os médicos para que fossem resolvidos problemas como dores abdominais, impossibilidades de coito, problemas no desenvolvimento das genitálias entre outros, favorecendo o surgimento da ginecologia que facilitou a identificação dos corpos e com isso, a medicina entrou em contato com um grande número de hermafroditas. Por mais que os registros das técnicas e procedimentos para esta prática datem do início do século XX e sejam escassos, sabe-se que em 1912 fora feita a primeira mastectomia em uma mulher que tinha o objetivo de virar homem. Em outro caso, em 1921, Dora se submeteu a um processo cirúrgico e ficou conhecida como a primeira transexual sofrendo uma penectomia, que no caso, seria a extirpação do pênis e a partir daí, outras pessoas também se submeteram ao processo onde se  justificavam normalmente como um erro da natureza e por muito tempo, tais cirurgias eram consideradas criminosas, coisa que na França só veio a ser descriminalizada em 1979.

            Existem duas propostas de manejo clínico formuladas e direcionadas para intersexuais ainda no século XX, o Modelo Centrado no Sigilo e na Cirurgia (MCSC) de John Money (1972) e o Modelo Centrado na Pessoa (MCP) de Milton Diamond (1997). O primeiro, parte da endocrinologia diante das descobertas da fase híbrida embrionária e então admite que há na realidade um bissexualismo inato que está construído em um espectro que vai do masculino até o feminino, porém traz a cirurgia estética como forma de encaixe social ganhando condição de prevenção à estigma, trazendo como momento propício, até 24 meses para evitar o desconforto gerado entre a ambiguidade genital e o meio social. 
   
  “O recém-nascido com genitália ambígua representa um problema urgente, que deve ser resolvido de modo rápido e preciso. Caso contrário, pode se instalar uma tragédia social duradoura por toda a vida, tanto para o paciente, quanto para a família.” Guerra & Guerra Jr.

    Já o Modelo Centrado na Pessoa traz a ideia de que não há nada que precise ser curado e desconstitui a ideia de que há alguma patologia presente no paciente partindo do pressuposto de que o sexo é uma interação entre o meio social e biológico. Diamond sugere que a cirurgia deve ser evitada ao máximo até que o paciente tenha a capacidade de opinar e ter gerência sobre seu próprio corpo. 

     Antes de qualquer tipo de intervenção, os modelos biomédicos trazem a importância da “descoberta do sexo no paciente”, pois nos casos de ambiguidade da genitália, não se sabe ao certo o que é, já que não são claramente nem masculino, nem feminino, e todo processo se caracteriza por ser muito confuso. Assim começa-se uma investigação da equipe médica que leva em consideração os seguintes aspectos do paciente intersexual:   


Fonte: Doc: Nem Homem nem Mulher.
  1. DNA nos cromossomos, se é masculino ou feminino; 
  2. Se possui ovários ou testículos;
  3. Presença ou ausência do útero e trompas. 
  4. Quais os hormônios o corpo produz e assim;
  5. Tentam determinar como as genitálias vão se desenvolver
  

Alves e Tubino (2003) descaracterizam a ambiguidade da genitália como patológico e traz como uma emergência social em volta daquilo que não há definição, baseado no estigma que carrega e qualifica as intervenções cirúrgicas como a conclusão de um processo que não foi concluído, fazendo questão de distanciar do entendimento de que seria uma construção do sexo que se encontra anômalo.
Ainda os autores – Alves e Tubino (2003) –, aconselham que em relação à definição sexual, devem ser entendidas através da viabilização da fertilidade e pela vida sexual ativa quando na fase adulta. No caso do pseudo-hermafroditismo:

“Se o paciente ainda for recém nascido ou lactante, é aconselhável que permaneça no sexo feminino, já que o testículo não é funcional e a infertilidade é regra. Se o paciente for maior de dois anos de idade e o sexo de criação for masculino, faz-se correção da genitália nesse sentido.” (Alves e Tubino, 2003)
E em relação ao hermafroditismo verdadeiro:

“Existe maior tendência para a escolha do sexo feminino, já que, na maioria das vezes, o tratamento e o resultado cirúrgico são os mais adequados.” (Alves e Tubino, 2003)

         Quando se discute sobre o que é o sexo verdadeiro, os autores trazem cinco tipos de sexo: O sexo genético; O sexo cromossômico; O sexo gonadal; O sexo fenótipo; E o sexo psicossocial. Sendo todos esses colocados de forma que um agindo sobre o corpo para originar o outro. Seguindo esta perspectiva, o sexo psicossocial seria resultado de todos esses sexos, sendo originado de modo que se formasse uma cadeia, caracterizando o sexo psicossocial como o que o indivíduo irá se reconhecer como tal.
Quanto a questão ética que se envolve, o Conselho Federal de Medicina através da Resolução Nº1.664/2003 define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadoras de anomalias de diferenciação sexual (ADS). Considera que “o alvo da atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.
O Conselho Federal de Medicina descreve algumas recomendações de como o médico deve fazer o manejo diante de casos de ADS, tal qual uma investigação aprofundada com exames de dosagens hormonais, citogenéticos, imagem e anatomopatológicos e regulamenta que para uma adoção do sexo é preciso que haja o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar com clínico geral e/ou pediatra, psicólogo, endocrinologista (pediátrica), cirurgião, psiquiatra e geneticista e a critério da equipe, outros profissionais podem fazer parte para que deem apoio ao paciente e à família/responsável legal informando com lealdade o problema e suas implicações. Tendo condições, o paciente deverá participar ativamente junto da escolha.

Referências:
ALVES, E.; TUBINO, P. Pediatria Cirúrgica. Brasília: Editora UNB, 2003.
DIAMOND, M. (1997). Sexual identity and sexual orientation in children  with traumatized or ambiguous genitalia. Journal of Sex Research, 34(2), 199-222.
GUERRA-JÚNIOR, G. (2002). Hermafroditismo verdadeiro. Em A.T. Maciel-Guerra & G. Guerra-Júnior (Orgs.), Menino ou Menina? Os Distúrbios de Diferenciação do Sexo (pp. 53-57). São Paulo: Editora Manole.
MONEY, J, & EHRHARDT, A. Man and Woman, Boy and Girl: Differentiation and dimorphism of gender identity from conception to maturity. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1972.
Resolução CFM Nº 1.664/2003 http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2003/1664_2003.htm Acessado em 31 de fevereiro de 2014.


SILVA, Raquel Lima de Oliveira e (2010). Entre a norma e a natureza: A construção da intersexualidade. Brasília.

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