Fonte: http://goo.gl/Uvf2tw |
Hoje iremos falar da cirurgia como sendo um dispositivo (de saber/poder)
que leva o sujeito intersex a se enquadrar em um dos sexos que é determinado
socialmente. A procura dessa determinação social do sexo se dá a partir de uma concepção
de corpo “normal” estabelecida no mundo, e que consequentemente permeia o
discurso médico fazendo com que a partir dessa concepção de corpo “normal” se
justifique a total autonomia para se (re)construir e controlar os corpos
intersex, tornando-os inaceitáveis dentro de um padrão social determinista.
Essa “correção” dos corpos se dá muito mais em função do discurso social e
médico de que é preciso identificar as pessoas a partir de um gênero (masculino
ou feminino) do que em função (na maioria das vezes) da real saúde das
crianças, aonde se procure contemplar em primeiro lugar o bem estar biopsicossocial
desse indivíduo. Como nos diz o grande filósofo Platão, “O homem é um todo integral e indivisível”, por isso o perigo de não
pensar esse sujeito em todas as esferas constituintes possíveis de seu
desenvolvimento. Veremos mais adiante, um pouco sobre o que vem a justificar a
prática da cirurgia em crianças portadoras de anomalia de diferenciação sexual (ADS). Será que é válida a justificativa dada para as intervenções
cirúrgicas em todas as crianças intersexuais?
Iremos ver a partir de agora que o Conselho Federal de Medicina (CFM) já
tem bem estabelecido todos os critérios e decisões sobre o adequamento sexual
(do ponto de vista anatômico/funcional) dos portadores de ADS. E embora haja
pessoas que sejam contra a redesignação sexual pautada predominantemente no
prognóstico anatômico padronizado e na adequação funcional do sexo, por não contemplar
as variadas e possíveis esferas do desenvolvimento citadas no parágrafo acima e
dentro dessa esfera principalmente o desenvolvimento psicológico desse sujeito,
a própria instituição como sendo um instrumento de poder na sociedade vem a
estabelecer uma possibilidade de “verdade” sobre o sujeito, que determina como
ele deve ser de acordo com padrões ditos “normais” pré-estabelecidos. O
Conselho Federal de Medicina vem a sustentar em seu discurso essa
possibilidade, como se sexo e gênero estivessem naturalmente inscritos no
corpo. A Resolução Nº 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina, é um
documento que guia a prática médica. Esse documento trás de forma definida as
normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de
anomalias de diferenciação sexual. Nesta Resolução constam todos os critérios
para diagnóstico e realização de cirurgias em pessoas com genitália ambígua.(Para
mais informações sobre esse discurso que procura normatizar os corpos dos
indivíduos intersexuais ver link da Resolução).
Segundo Foucault “o discurso veicula e produz poder”, poder esse que
percebemos exercido sobre os intersexuais em forma de discurso como observado
num artigo publicado por Méllo et al (2009) no XV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO quando:
“os médicos indicam cirurgias “reparadoras”
precocemente, afirmando que as crianças possuem a genitália incompletamente
formada e que através da cirurgia as correções serão realizadas. Além das
cirurgias, hormônios são prescritos, dilatações vaginais são feitas
regularmente para que estes corpos possam ser normalizados.”
Embora
esse saber/poder instituído no/pelo discurso biomédico prevaleça na sociedade
ocidental como uma forma de controle sobre os corpos intersexuais, não devemos
negligenciar que se promova o acompanhamento multiprofissional do sujeito
intersexuado; em prol de uma abordagem preventiva há que se considerar a
especificidade e complexidade de cada caso, visto que, há também casos que
precisam de intervenção urgente, por exemplo, quando ocorre risco de vida para
a criança, conforme mostra a Resolução Conselho Federal de Medicina Nº
1.664/2003 (link da resolução). Isso inclui reconhecer que em certos casos seja
realmente preciso fazer a cirurgia na criança, sendo esta a orientação mais
adequada a ser tomada. Contudo, há casos em que as possibilidades são mais
diversificadas e, portanto, nestes não se deve ficar sob o jugo normalizador e
controlador vigente, cuja primazia possa ser não bem a saúde integral da
criança e sim a ansiedade dos envolvidos, em querer enquadrar a criança dentro
de um padrão estabelecido como sendo “normal”.
Fonte: http://goo.gl/WFSvUE |
A partir de uma suposta “verdade” do sujeito a respeito do sexo, na
medida em que a intersexualidade passa a ser concebida como consequência de uma
desordem orgânica (hormonal, genética ou de outra ordem) e até mesmo como
“doença” em si, o intersexo passa a ser inscrito nessa sociedade como uma
questão biomédica. Uma das coisas que podemos notar é que na sociedade
ocidental, o intersexo passa a ser circunscrito dentro dessa lógica, favorecendo,
por exemplo, a tomada de decisão para se realizar cirurgias precocemente (como
já citado a cima). Nesta sociedade a realização dessas cirurgias, de forma
precoce, passam a ser consideradas como uma conduta legitima, socialmente
aceita e como sendo a melhor opção. O Conselho Federal de Medicina determina em
sua Resolução (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003) que a
intersexualidade é uma “urgência biológica e social”, porém, há casos que não
necessitam dessa urgência e que inclusive pode vir a causar danos que podem ser
irreversíveis conforme nos mostra a própria Resolução citada à cima. Diante do
comentado acima podemos perceber claramente as mudanças que ainda se fazem
necessárias na esfera da atuação profissional em saúde.
É digno de nota observar um artigo sobre A luta dos intersexuais na Suíça, onde o Dr. Meyrat argumenta que:
“Considerava-se que era importante ter
um tratamento rápido para inserir o indivíduo na sociedade e atender à profunda
angústia dos pais. Posteriormente estudos começaram a demonstrar que os
resultados da cirurgia não eram nem simples nem satisfatórios”.
Quando elas são irreversíveis, essas
intervenções podem de fato causar danos se o sexo atribuído não corresponder ao
mental, e isso é o que é visto em depoimentos de pessoas que passaram por essa
experiência dolorosa (para mais informações ver: A
Luta dos intersexuais na Suíça).
De acordo com Moara Santos e Tereza Araújo (2003)
no artigo A Clínica da Intersexualidade e
seus Desafios para os Profissionais de Saúde:
“Quando se enfatiza a urgência operatória,
transmite-se a ideia de que existem riscos para a saúde da criança, podendo ser
este um fator que confunde a família, pois, na realidade, é raro existir tal
condição. Na maior parte dos casos, a decisão pode ser adiada do ponto de vista
médico. A intervenção profissional em tal contexto de espera, dúvida e
ansiedade provê alívio aos pais quanto ao sexo no qual criar a criança,
endossando a proposta adotada pelo profissional médico, além de gratificar a
equipe de saúde por ter
condições de oferecer algum conforto para a família”.
Fonte: http://goo.gl/OP0r1e |
Este discurso biomédico de que estamos falando é pautado em
padrões biológicos culturalmente delimitados, onde a função do médico é a
partir desses padrões descobrir qual o “verdadeiro” sexo da criança
intersexual. Isso sugere uma suposição de que pessoas na condição de
intersexualidade, não poderiam gozar de uma boa satisfação de suas vidas, assim
como gozam as pessoas “normais”; não seriam totalmente satisfeitas por não
poderem se desenvolver plenamente. O que vemos, é que as condições biológicas
dos sujeitos intersexuais, diante do discurso vigente, acabam abrindo espaço
para as práticas de reconstituição dos órgãos sexuais como algo de extrema
relevância para a consolidação do “verdadeiro sexo”. Esse discurso procura
agregar esforços em direção à definição do sexo do sujeito intersexual,
moldando estes a cultura binarista de nossa sociedade. Diante do enunciado
acima, os profissionais de saúde e os familiares, visando a promover a
integridade física e emocional do intersexual, são levados a justificar (alguns
até mesmo inconscientemente) a prática cirúrgica do ajustamento do corpo ao
gênero designado, como sendo esta a melhor opção, ainda que muitas vezes a
decisão seja tomada precocemente em casos sem necessidade de urgência.
Moara Santos e Tereza Araújo (2003) também trazem uma informação instigante sobre um roteiro proposto por Diamond e Sigmundson onde neste há uma afirmação em que os profissionais de saúde e demais envolvidos em casos clínicos de sujeitos intersexuais (principalmente crianças) deveriam tomar como exemplo, o roteiro diz o seguinte:
“temos que ser ’autoridades’ em prover informação e aconselhamento, e não ser ‘autoritários’ nas nossas ações. Devemos permitir ao paciente pós-púbere um tempo para considerar, refletir, discutir e avaliar e, só então, ter a última palavra na modificação de sua genitália, papel de gênero e designação sexual final”.
Se passarmos a observar melhor e também tentarmos compreender a intersexualidade por esse outro ângulo poderemos caminhar no sentido de uma corroboração bem mais favorável à adaptação integral do indivíduo intersexual e sua inserção nessa sociedade ainda hoje binarista.
Haverá uma postagem mais adiante que trará mais informações sobre como se dá o manejo das cirurgias reparadoras. Aguardem!
Moara Santos e Tereza Araújo (2003) também trazem uma informação instigante sobre um roteiro proposto por Diamond e Sigmundson onde neste há uma afirmação em que os profissionais de saúde e demais envolvidos em casos clínicos de sujeitos intersexuais (principalmente crianças) deveriam tomar como exemplo, o roteiro diz o seguinte:
“temos que ser ’autoridades’ em prover informação e aconselhamento, e não ser ‘autoritários’ nas nossas ações. Devemos permitir ao paciente pós-púbere um tempo para considerar, refletir, discutir e avaliar e, só então, ter a última palavra na modificação de sua genitália, papel de gênero e designação sexual final”.
Se passarmos a observar melhor e também tentarmos compreender a intersexualidade por esse outro ângulo poderemos caminhar no sentido de uma corroboração bem mais favorável à adaptação integral do indivíduo intersexual e sua inserção nessa sociedade ainda hoje binarista.
Haverá uma postagem mais adiante que trará mais informações sobre como se dá o manejo das cirurgias reparadoras. Aguardem!
Referência
bibliográfica
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