domingo, 16 de fevereiro de 2014

Livro: Menino de Ouro


menino de ouro kit
   Nossa amiga Clara, do blog Infinito particular, nos recomendou um livro que estava lendo, "Menino de Ouro”, de Abigail Tarttelin, cujo personagem principal era Max, um intersexual. Este post é em agradecimento à indicação.

     Abigail conta a história de um hermafrodita verdadeiro (46xx/46xy) e seu mundo de segredos. Por pertencer a uma família influente em uma cidadezinha do interior da Inglaterra, Max teve seu segredo guardado as sete chaves, e aprendeu a não tocar neste assunto vendo o casamento dos seus pais desmoronar em frente aos seus olhos.

    O livro narra a história partindo da adolescência de Max, dando ênfase às relações carnais entre adolescentes, problematizando o início das relações sexuais para os intersexuais. A autora escreve sobre a redescoberta de Max do seu próprio corpo, a tomada de consciência do corpo intersexual.

(ALERTA DE SPOILER)
A autora mostra como o desconhecimento do corpo do intersexual pode afetar as relações do indivíduo intersexuais. Quando narra a violação do corpo de Max, que não fez nenhum cirurgia reparadora quando criança, pelo seu melhor amigo e o impasse que ele viveu após o trauma (sou um menino/menina?! Sou um menino? O que eu sou?!), o pensamento mais chocante vindo de Max é: “Mas certamente, Isso acontece com meninas”. Um ato de violência vem carregado de significados dolorosos por si só, imagine para Max, que é intersexual. É neste contexto que Max começa a se questionar, apesar de ter toda a certeza que é menino, o que faz dele menino ou não? Quem tem o direito de decidir o que ele vai ser?
Abigail ainda explora a reação da mãe de Max ao se deparar com um filho intersexual, a sensação de fracasso,de que cometeu algum erro, seguida da incerteza da longevidade do filho, de se ele vai conseguir ser feliz como intersexual, se deveria ter feito a cirurgia reparadora ou tomou a decisão certa. A reação da mãe de Max quando ele contou que estava grávido, o desespero que alguém descobrisse, o medo de perder o filho, de fazê-lo infeliz.

      É emocionante ver a realização de Max ao aceitar sua condição de intersexual, ele diz: “Meninos e meninas e pessoas intersexuais e eu somos apenas ideias, e, quando morrermos, essas ideias desaparecerão conosco.” [...] “Eu estou vivo. Isso é uma coisa boa. Estou feliz com isso. Sou intersexual e começo a aceitar melhor esse fato.”.

Enfim, é uma história muito bonita e cheia de surpresas, vale a pena a leitura! 


Intersexualidade e questões Legais

   Todos nós, ao nascermos, temos direito a uma identidade pessoal. Só seremos considerados cidadãos, dotados de direitos e deveres civis, a partir do registro de nascimento, onde consta nosso nome, filiação, naturalidade, data de nascimento e... o sexo de nascimento. Mas, e quando uma criança intersexual nasce?
   “A disciplina do Registro Civil de Pessoas Naturais (Lei 6.015/73) determina o assentamento em prazo de 15 dias após o nascimento da criança exigindo, para tanto, a indicação do seu nome e sexo. Nestes termos, a lei especial impõe aos familiares da criança com intersexo uma determinação legal de remoto cumprimento no prazo de duas semanas.” (FRASER, 2002)
      Podemos pensar a partir dessa imposição a uma identidade sexual como sendo mais um instrumento reforçador do discurso que propõe a urgência de reparações cirúrgicas naqueles que nascem sem um sexo claramente definido.
    Temos visto recentemente que alguns países já estão modificando essas formas de registro dos indivíduos. A Alemanha foi o primeiro país a autorizar que bebês sejam registrados sem a classificação de gênero masculino/feminino (Notícia completa aqui).
"Maculino, Feminino, Ambos". Fonte: http://bit.ly/1dzvJjz
      Além deste País, a Austrália também adotou uma medida que permite aos transexuais, intersexuais e pessoas que se consideram como tendo um “sexo neutro”, possuam uma alternativa tanto em passaportes (desde 2011) quanto nos documentos oficiais,  mais recentemente (Matéria neste site). Países mulçumanos como Paquistão, Afeganistão e Nepal já reconhecem pessoas com mais de um sexo, isto porque a intersexualidade é reconhecida no Corão. No entanto, ainda existe uma forte segregação destes indivíduos. Como afirma Bindiya Rana (Matéria completa)Para a maioria dos intersexuais, o que resta é apenas mendigar ou trabalhar na prostituição."
       Podemos pensar, com isso, que apesar desses avanços em termos legais possibilitarem a não-determinação do sexo destes indivíduos em registros de identificação, os mesmos ainda convivem com várias questões que limitam seu pleno acesso à igualdade. Como se dará um casamento com uma pessoa que não possui sexo determinado na certidão, em países onde só é permitido legalmente casamento entre um homem e uma mulher? Para onde serão encaminhadas crianças com sexo indeterminado, nas escolas onde só existem banheiros masculinos ou femininos? (em Berlim, a Assembleia Legislativa decidiu instalar toaletes unissex em prédios públicos.).  Percebe-se, assim, que mudanças em diversos âmbitos sociais são necessários, pois todas as esferas do poder se encontram articuladas e se influenciam mutuamente (Política, Religião, Produções Científicas, Direito entre outros) e apenas uma compatibilidade entre estes poderes, associada a uma mudança dos discursos ideológicos produzidos por estas esferas e repetidos na sociedade, permitirá de fato acesso pleno à igualdade entre todos os indivíduos. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Reflexão para uma Ética responsável e à altura dos desafios contemporâneos a respeito da Intersexualidade

         Contra a apatia dominante e confusão generalizada acerca do que é bom ou mau, certo ou errado, em termos éticos e morais a respeito dos intersexuais, apresentaremos neste texto uma reflexão que visa criar clareza e motivação para um comportamento ético e moral responsável e à altura dos desafios contemporâneos a respeito da intersexualidade.
Fonte: http://bit.ly/MYhVEM
         Uma vez que se pretenda fazer uma reflexão ética concernente ao tema da intersexualidade neste trabalho, é de fundamental importância definir o conceito de ética, fazendo uma breve diferenciação com o termo moral - uma vez que ambos os termos se relacionam e tendem a ser confundidos um com o outro. Etimologicamente, o termo moral vem do latim mos ou mores, que significa “costume” ou “costumes”, no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. Já ética vem do grego ethos que significa “modo de ser” ou “caráter”, enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem. Originariamente, portanto, ambos os termos não correspondem a uma disposição natural, mas sim a algo adquirido ou conquistado por hábito.
         Segundo Martins (1998), a ética se diferenciaria da moral por meio do respeito à singularidade dos sujeitos, ou às diferenças que subsistem à revelia das tentativas de padronização pretendidas pelas regras supostamente universais. Nesse sentido, a moral se colocaria contra a singularidade e ao lado da oposição entre o indivíduo e a sociedade, pois obrigaria o sujeito a se submeter a um critério externo, a ceder alguma coisa de sua singularidade em prol da normalização das condutas. A psicanálise mostra que somos resultado e expressão de nossa história de vida. Não somos autores nem senhores de nossa história, mas efeitos dela. O sujeito ético, isto é, a pessoa, só pode existir se for consciente de si e dos outros, ser dotado de vontade, capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos e capacidade para deliberar e decidir, ser responsável e ser livre.
         As discussões acerca do indivíduo intersexual, nas postagens anteriores, já nos mostraram que aparentemente os intersexuais se encontram num espaço perdido, descentralizado, onde eles se veem obrigados a tomar o modelo dicotômico (binário) como referência. Ou seja, neste contexto, o discurso vigente dominante provoca a sociedade (que desconhece do assunto) a tomar a noção de binarismo (homem/mulher) como uma referência estática e controladora, onde todo o “estranho”, o “mutável”, deve ser visto e controlado pelo pressuposto de uma ideologia que trás uma garantia única de certeza. A temática da intersexualidade se fez não apenas como centro de nossas discussões, mas também como referência para todo tipo de pensar e agir que, predominantemente, fundamenta uma ética contemporânea.
         Ao utilizarmos o referencial teórico da psicanálise, sob a ótica de Sigmund Freud e de Jacques Lacan, veremos que ao falarmos de ética em psicanálise estamos falando de algo que ultrapassa a barreira do bem e do mal, estamos falando de uma ação do sujeito que considera o seu próprio desejo. Kehl (2002) afirma que a Psicanálise não é apenas uma proposta ética, mas um saber de dimensões humanistas que pode contribuir para a construção de uma ética mais adequada às condições das sociedades contemporâneas, já que considera o sujeito moderno em suas dimensões inseparáveis de conflito e liberdade, de solidão e sociabilidade.
         O que queremos trazer a reflexão é que a ética do desejo (do intersexual) possa ser entendida como uma resistência à crescente massificação de um discurso sob seu corpo e consequentemente sob sua subjetividade. Que também se possa pensar uma ética como possibilidade de reflexão, sobre a atuação dos profissionais envolvidos, na decisão de cirurgias precoces de intersexuais. No que se refere à aplicação prática das cirurgias precoces e seus efeitos produzidos ao longo do tempo, que não seja caracterizado um esquecimento sistemático do “outro” que ali está. Que esse sujeito (esse “outro”) também possa ter o direito de decidir sobre si a partir de uma posição essencialmente ética, se dando essa oportunidade com a possibilidade da não realização da cirurgia precoce nos casos possíveis, que são a maioria.
         Para uma ética responsável é imprescindível garantir a liberdade de escolha do “outro”; é imprescindível também, proteger o “outro” de ser reduzido ao “mesmo”. Em outras palavras, que esse “outro” seja recebido em sua irredutível “estranheza”. A própria definição de “sujeito ético” é que este deve “ser consciente de si e dos outros, isto é, reconhecer as pessoas como sujeitos éticos também. É também ser livre, ou seja, poder fazer de modo consciente e seguro suas escolhas, opções; sem sofrer pressão externa.” Nossa reflexão lança base para uma compreensão do sujeito intersexual baseada na responsabilidade ética, fazendo com que as pessoas se sintam estimuladas a serem “melhores”, mais responsáveis, face a complexidade da temática vigente.

Referências

KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARTINS, A. Relações local-global nas redes transdisciplinares: globalização e singularidade. Revista de Ciências Humanas (UGF). Rio de Janeiro. 21(1): 47-72, 1998.

revistas.unipar.br/akropolis/article/download/2841/2109

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Campeã ou Campeão: Intersexual gera polemica no tênis




Em Março de 2009 uma notícia abalou o mundo do tênis e causou uma polêmica que dividiu opiniões e virou caso de justiça desportiva com petição e análise do WTA (Woman’s Tennis Association), órgão que gere o tênis a nível mundial. O que causou tanta comoção? O fato de que uma tenista alemã chamada Sarah Gronert de 22 anos e intersexual, ter removido seu pênis numa cirurgia de readequação sexual e depois do procedimento ganhar o título do torneio de Raana, em Israel no início de março daquele ano 

O caso Sarah Gronert causou impacto nas discussões sobre gênero no esporte depois do título, pois como todos nesta altura do campeonato já sabe, um indivíduo intersexo nasce em alguns casos com sua genitália ambígua e desde cedo se tenta readequá-lo como masculino ou feminino (ver mais aqui e aqui). No caso de Sarah ela era uma hermafrodita verdadeira possuindo os órgãos dos dois gêneros . A tenista sempre se viu como uma mulher e compete no tênis há alguns anos, porém isso não foi suficiente para convencer os adversários depois que eles ficaram sabendo da condição de SarahJogadoras e técnicos que competem diretamente com com a alemã alegam que ela tem muitas características masculinas e isso daria uma vantagem física maior a atleta na hora do embate. O técnico Schlono Tzoref, técnico da jogadora Julia Glushko, na época em entrevista ao New York Daily disse sobre Sarah: “Não há nenhuma garota que pode bater um serve¹ como essa, nem mesmo a Venus Williams² [...] Isso não é uma mulher, é um homem. Ela não tem o poder de uma mulher, nenhuma mulher tem esta técnica.” Segundo o técnico se ela continuasse assim em pouco tempo ela estaria entre as 50 melhores no ranking mundial da WTA. 

Fonte: http://goo.gl/lJO5H6

            Apesar das críticas feitas pelo técnico israelense, é possível conceber que o caso de Sarah não é tão desleal assim, pois ela ainda estava em ascensão e sua posição no Ranking da WTA era a 619º ainda bem abaixo das tenistas top's. Mencionando o Alexandre Cossenza da Globo.com  Sarah já estava com 22 anos e esta é uma idade avançada para a elite do Tênis, outra coisa não precisa ser homem pra sacar forte, pois será que todos os homens conseguem sacar com tanta potência como Venus Williams?

Veja este vídeo de Sarah  e tire suas próprias conclusões ( A tenista Joga a cima no vídeo)

Outro ponto curioso neste caso de Sarah foi a adoção do acontecido como bandeira de luta pelos  transexuais  pelos direitos LGBT, porém isso causou um mal-estar não só na atleta que poderia ser prejudicada em seu esporte, como também nos intersexuais que defendiam que a atleta não era um homem que fez uma cirurgia para virar mulher e sim um intersexual que se adequou ao gênero ao qual se identificava a muito tempo (para saber mais sobre o assunto veja aqui). 


Apesar das alegações dos adversários a WTA já tinha investigado o caso de Sarah Gronert e sua petição para continuar disputando oficialmente os campeonatos femininos de tênis foram todos aceitos pelo órgão regulador. Três anos antes em 2006, Sarah era a 619º no ranking e quase abandonou as quadras oficiais da WTA após ter sido alvo das mesmas críticas, porém continuou aparecendo em três torneios até 2009 vencendo dois, o de Raana em Israel e o de Kaarst na Alemanha. Hoje não temos muitas notícias sobre como está a carreira da atleta, porém no ranking da WTA Sarah Gronert aparece em 2012 como a 237ª colocada.


Veja esta entrevista com Sarah Gronert após o seu segundo título
na modalidade simples na Inglaterra.

Sarah Gronert não foi à única no mundo do esporte a atrair olhos curiosos por ser intersexual, em breve veremos o caso de uma atleta de ponta que quase perdeu uma medalha por causa disso. Curioso? Fique ligado!




¹ Serve: Lance do inicial do tênis equivalente ao saque no vôlei, onde um jogador arremessa a bola, geralmente muito forte em direção ao seu adversário.
² Vênus Williams: Umas das principais atletas da modalidade que na época ocupava o 1ª lugar no Ranking mundial feminino do tênis. 




Referências:  

http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Tenis/0,,MUL1051760-15090,00.html
http://globoesporte.globo.com/platb/saqueevoleio/2009/03/20/que-vantagem-e-essa/

As lutas dos intersexuais pelo mundo:

Ao redor do mundo existem inúmeras organizações que trazem a intersexualidade para plano principal - são as chamadas Organizações Internacionais dos Intersexuais (OII) - nesse site você pode ser direcionado para os blogs das OII´s de vários países, inclusive o site brasileiro.  

Fonte: http://bit.ly/1et2bzB


As OII´s trazem como Principios Fundamentais, dentre outros: a rejeição pela categorização dos intersexuais em termos médicos, aos discursos de impossibilidade de desenvolvimento humano em condições “bi-compartimentadas” socialmente de modo sexista. Além disso, advogam a favor do “direito a seu corpo, a seus genitais e a sua auto-identificação, de forma autônoma.”  sem a interferência “autoritárias e heterônomas” sobre este e a sua identidade. Para ler todos os principios fundamentais, clique aqui.


Outra questão bastante importante a ser trazida aqui é a condição de falta que rodeia os indivíduos intersexuais. Por conta da desinformação e, principalmente, da rejeição por meio da sociedade a indivíduo em condições “atípicas”, as pessoas intersexuais vivem em condições de pobreza e descuido (leia esta entrevista com @ ativista e terapeuta intersex Mani Mitchell sobre a pobreza e pessoas intersex).


“Quando você não faz parte da sociedade, é difícil prosperar. Coisas simples como acesso ao trabalho remunerado, um lugar seguro para viver, cuidados médicos adequados, são todos conectados. Temos pouquíssimos dados sobre quantas pessoas apenas existem de uma forma muito triste, como muitos jovens simplesmente desistem, como muitos outros se perdem num mal-estar mental, no abuso de drogas e álcool…”


Por fim, quero trazer novamente a questão das intervenções cirurgicas e medicamentais como ponto-chave no debate dos movimentos intersexuais. Já falamos sobre as intervenções médicas Aqui (de forma mais explicativa) e Aqui (fazendo uma análise do discurso de poder biomédico sobre as cirurgias). Descontruir uma ideia “humanidade sexuada” (você é, antes de tudo, homem ou mulher), tão fortemente adotada na nossa cultura, parece ser um primeiro passo para a despatologização de indivíduos que não conseguem se encontrar em categorias físicas e “socialmente naturalizadas” de ser humano. A busca, por movimentos intersexuais ao redor do mundo, pela aceitação e autonomia sobre o próprio corpo propõe que as cirurgias de readequação sexual consideradas “necessárias” (sem de fato o serem - considerando o não risco à vida do indivíduo) sejam repensadas, relativizadas e evitadas, até possibilidade de conhecimento e escolha do próprio sujeito intersexual, em fase posterior de sua vida. Conceder ao intersexual a escolha principal sobre o seu próprio corpo e sua identidade se mostra fundamental para se começar a pensar, de fato, em igualdade de direitos (Falaremos em breve sobre questões legais envolvendo indivíduos intersexuais e os limites para essa igualdade de direitos) e respeito a multiplicidade dos corpos.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O manejo clínico diante das cirurgias reparadoras e seus preceitos éticos

Fonte: http://migre.me/hJaoi
Um dos pontos mais polêmicos que permeiam a vida de um ser intersexual, tanto em questões individuais, existenciais, de pertença e identificação como também em questões de produções de saberes, envolvendo contextos históricos, políticos e científicos, é a intervenção cirúrgica de readequação sexual nos indivíduos classificados como portadores da chamada "Anomalia de Diferenciação Sexual" (ADS).

            Para entender um pouco melhor sobre as cirurgias de readequação sexual, é bom mergulhar na história e saber quando tais práticas começaram a se fixar no meio médico. Já a partir do século XIX é possível encontrar vários registros médicos documentados sobre intersexos, que na época, a nomenclatura vigente ainda era hermafroditismo. Os avanços da medicina social foram importantes para que se ampliasse o acesso e mais pessoas procurassem os médicos para que fossem resolvidos problemas como dores abdominais, impossibilidades de coito, problemas no desenvolvimento das genitálias entre outros, favorecendo o surgimento da ginecologia que facilitou a identificação dos corpos e com isso, a medicina entrou em contato com um grande número de hermafroditas. Por mais que os registros das técnicas e procedimentos para esta prática datem do início do século XX e sejam escassos, sabe-se que em 1912 fora feita a primeira mastectomia em uma mulher que tinha o objetivo de virar homem. Em outro caso, em 1921, Dora se submeteu a um processo cirúrgico e ficou conhecida como a primeira transexual sofrendo uma penectomia, que no caso, seria a extirpação do pênis e a partir daí, outras pessoas também se submeteram ao processo onde se  justificavam normalmente como um erro da natureza e por muito tempo, tais cirurgias eram consideradas criminosas, coisa que na França só veio a ser descriminalizada em 1979.

            Existem duas propostas de manejo clínico formuladas e direcionadas para intersexuais ainda no século XX, o Modelo Centrado no Sigilo e na Cirurgia (MCSC) de John Money (1972) e o Modelo Centrado na Pessoa (MCP) de Milton Diamond (1997). O primeiro, parte da endocrinologia diante das descobertas da fase híbrida embrionária e então admite que há na realidade um bissexualismo inato que está construído em um espectro que vai do masculino até o feminino, porém traz a cirurgia estética como forma de encaixe social ganhando condição de prevenção à estigma, trazendo como momento propício, até 24 meses para evitar o desconforto gerado entre a ambiguidade genital e o meio social. 
   
  “O recém-nascido com genitália ambígua representa um problema urgente, que deve ser resolvido de modo rápido e preciso. Caso contrário, pode se instalar uma tragédia social duradoura por toda a vida, tanto para o paciente, quanto para a família.” Guerra & Guerra Jr.

    Já o Modelo Centrado na Pessoa traz a ideia de que não há nada que precise ser curado e desconstitui a ideia de que há alguma patologia presente no paciente partindo do pressuposto de que o sexo é uma interação entre o meio social e biológico. Diamond sugere que a cirurgia deve ser evitada ao máximo até que o paciente tenha a capacidade de opinar e ter gerência sobre seu próprio corpo. 

     Antes de qualquer tipo de intervenção, os modelos biomédicos trazem a importância da “descoberta do sexo no paciente”, pois nos casos de ambiguidade da genitália, não se sabe ao certo o que é, já que não são claramente nem masculino, nem feminino, e todo processo se caracteriza por ser muito confuso. Assim começa-se uma investigação da equipe médica que leva em consideração os seguintes aspectos do paciente intersexual:   


Fonte: Doc: Nem Homem nem Mulher.
  1. DNA nos cromossomos, se é masculino ou feminino; 
  2. Se possui ovários ou testículos;
  3. Presença ou ausência do útero e trompas. 
  4. Quais os hormônios o corpo produz e assim;
  5. Tentam determinar como as genitálias vão se desenvolver
  

Alves e Tubino (2003) descaracterizam a ambiguidade da genitália como patológico e traz como uma emergência social em volta daquilo que não há definição, baseado no estigma que carrega e qualifica as intervenções cirúrgicas como a conclusão de um processo que não foi concluído, fazendo questão de distanciar do entendimento de que seria uma construção do sexo que se encontra anômalo.
Ainda os autores – Alves e Tubino (2003) –, aconselham que em relação à definição sexual, devem ser entendidas através da viabilização da fertilidade e pela vida sexual ativa quando na fase adulta. No caso do pseudo-hermafroditismo:

“Se o paciente ainda for recém nascido ou lactante, é aconselhável que permaneça no sexo feminino, já que o testículo não é funcional e a infertilidade é regra. Se o paciente for maior de dois anos de idade e o sexo de criação for masculino, faz-se correção da genitália nesse sentido.” (Alves e Tubino, 2003)
E em relação ao hermafroditismo verdadeiro:

“Existe maior tendência para a escolha do sexo feminino, já que, na maioria das vezes, o tratamento e o resultado cirúrgico são os mais adequados.” (Alves e Tubino, 2003)

         Quando se discute sobre o que é o sexo verdadeiro, os autores trazem cinco tipos de sexo: O sexo genético; O sexo cromossômico; O sexo gonadal; O sexo fenótipo; E o sexo psicossocial. Sendo todos esses colocados de forma que um agindo sobre o corpo para originar o outro. Seguindo esta perspectiva, o sexo psicossocial seria resultado de todos esses sexos, sendo originado de modo que se formasse uma cadeia, caracterizando o sexo psicossocial como o que o indivíduo irá se reconhecer como tal.
Quanto a questão ética que se envolve, o Conselho Federal de Medicina através da Resolução Nº1.664/2003 define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadoras de anomalias de diferenciação sexual (ADS). Considera que “o alvo da atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.
O Conselho Federal de Medicina descreve algumas recomendações de como o médico deve fazer o manejo diante de casos de ADS, tal qual uma investigação aprofundada com exames de dosagens hormonais, citogenéticos, imagem e anatomopatológicos e regulamenta que para uma adoção do sexo é preciso que haja o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar com clínico geral e/ou pediatra, psicólogo, endocrinologista (pediátrica), cirurgião, psiquiatra e geneticista e a critério da equipe, outros profissionais podem fazer parte para que deem apoio ao paciente e à família/responsável legal informando com lealdade o problema e suas implicações. Tendo condições, o paciente deverá participar ativamente junto da escolha.

Referências:
ALVES, E.; TUBINO, P. Pediatria Cirúrgica. Brasília: Editora UNB, 2003.
DIAMOND, M. (1997). Sexual identity and sexual orientation in children  with traumatized or ambiguous genitalia. Journal of Sex Research, 34(2), 199-222.
GUERRA-JÚNIOR, G. (2002). Hermafroditismo verdadeiro. Em A.T. Maciel-Guerra & G. Guerra-Júnior (Orgs.), Menino ou Menina? Os Distúrbios de Diferenciação do Sexo (pp. 53-57). São Paulo: Editora Manole.
MONEY, J, & EHRHARDT, A. Man and Woman, Boy and Girl: Differentiation and dimorphism of gender identity from conception to maturity. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1972.
Resolução CFM Nº 1.664/2003 http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2003/1664_2003.htm Acessado em 31 de fevereiro de 2014.


SILVA, Raquel Lima de Oliveira e (2010). Entre a norma e a natureza: A construção da intersexualidade. Brasília.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Intersexualidade e mídia: Filme "XXY"




     Dirigido por Lucía Puenzo, XXY traz a história de Alex (Ines Efron), uma garota intersexual que vive com sua mãe Suli (Valéria Bertuccelli) e seu pai Kraken (Ricardi Darín) num vilarejo no Uruguai. A família recebe a visita do casal Erika (Carolina Pelleritti), seu marido, o cirurgião Ramiro (German Palacios) e seu filho de 16 anos, Alvaro (Martin Piroyansky) em sua casa.

     O filme traz uma série de situações pertinentes ao mundo da intersexualidade, muitos dos quais já trouxemos aqui para discussão. A questão da sexualidade está sempre presente em Alex, desde suas conversas com Alvaro sobre masturbação, seu interesse por sexo, até as temáticas da identidade de gênero e orientação sexual.( Leia nossa postagem sobre Sexo, Identidade de Genero e OrientaçãoSexual) Alex, logo no início do filme demonstra não ter vontade de tomar os medicamentos que inibem sua masculinização, assim como afirma não querer passar por cirurgias reparadoras e além disso passa a sentir interesse por Álvaro, que também retribui o sentimento. 
Outro aspecto importante trazido no drama é o estigma sofrido por Alex. O fato da família ter se mudado para um lugar mais distanciado da cidade já é um motivo pelas pressões sofridas para que a garota passe pela cirurgia reparadora. Além disso, sua condição intersexual passa a ser descoberta pelos moradores do vilarejo, que agem de forma discriminatória e invasiva.




      A questão familiar é outro ponto importante. A mãe convida a família pensando numa possível intervenção cirúrgica de Alex, pois acredita que este talvez seja um desejo da garota, que poderá ser socializada de forma "normal". O pai, Kraken, por outro lado, se mostra intransigente à ideia. Uma cena interessante é a da conversa entre Kraken e um intersexual que vive como homem depois de uma cirurgia reparadora. Este fala sobre suas vivências anteriores, sobre suas escolhas e como foi passar pela intervenção médica. Para saber mais sobre este tema, leia esta postagem a respeito das cirurgias reparadoras e suas implicações.

      XXY é um filme que retrata as angústias e as formações subjetivas de sujeitos intersexuais e promove uma discussão muito rica sobre as singularidades da formação de cada ser humano. É também um retrato da sociedade que estranha, repudia e tenta normatizar o incomum. Alex, quando seu pai lhe tranquiliza ao afirmar que dará tempo para ela escolher o que quiser ser, responde de forma simples e que poderia ser até inconcebível para muitos: "E se não tiver o que se escolher?". 

      O filme está disponível na aba "Links Relacionados", do lado direito do blog.