Contra
a apatia dominante e confusão generalizada acerca do que é bom ou mau, certo ou
errado, em termos éticos e morais a respeito dos intersexuais, apresentaremos
neste texto uma reflexão que visa criar clareza e motivação para um
comportamento ético e moral responsável e à altura dos desafios contemporâneos
a respeito da intersexualidade.
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Fonte: http://bit.ly/MYhVEM |
Uma vez que se pretenda fazer uma reflexão
ética concernente ao tema da intersexualidade neste trabalho, é de fundamental
importância definir o conceito de ética, fazendo uma breve diferenciação com o
termo moral - uma vez que ambos os termos se relacionam e tendem a ser
confundidos um com o outro. Etimologicamente, o termo moral vem do latim mos ou mores,
que significa “costume” ou “costumes”, no sentido de conjunto de normas ou
regras adquiridas por hábito. Já ética vem do grego ethos que significa “modo de ser” ou
“caráter”, enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem.
Originariamente, portanto, ambos os termos não correspondem a uma disposição
natural, mas sim a algo adquirido ou conquistado por hábito.
Segundo
Martins (1998), a ética se diferenciaria da moral por meio do respeito à
singularidade dos sujeitos, ou às diferenças que subsistem à revelia das
tentativas de padronização pretendidas pelas regras supostamente universais.
Nesse sentido, a moral se colocaria contra a singularidade e ao lado da
oposição entre o indivíduo e a sociedade, pois obrigaria o sujeito a se
submeter a um critério externo, a ceder alguma coisa de sua singularidade em
prol da normalização das condutas. A psicanálise mostra que somos resultado e
expressão de nossa história de vida. Não somos autores nem senhores de nossa
história, mas efeitos dela. O sujeito ético, isto é, a pessoa, só pode existir
se for consciente de si e dos outros, ser dotado de vontade, capacidade para
controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos e capacidade
para deliberar e decidir, ser responsável e ser livre.
As
discussões acerca do indivíduo intersexual, nas postagens anteriores, já nos
mostraram que aparentemente os intersexuais se encontram num espaço perdido,
descentralizado, onde eles se veem obrigados a tomar o modelo dicotômico
(binário) como referência. Ou seja, neste contexto, o discurso vigente
dominante provoca a sociedade (que desconhece do assunto) a tomar a noção de
binarismo (homem/mulher) como uma referência estática e controladora, onde todo
o “estranho”, o “mutável”, deve ser visto e controlado pelo pressuposto de uma
ideologia que trás uma garantia única de certeza. A temática da
intersexualidade se fez não apenas como centro de nossas discussões, mas também
como referência para todo tipo de pensar e agir que, predominantemente,
fundamenta uma ética contemporânea.
Ao
utilizarmos o referencial teórico da psicanálise, sob a ótica de Sigmund Freud
e de Jacques Lacan, veremos que ao falarmos de ética em psicanálise estamos
falando de algo que ultrapassa a barreira do bem e do mal, estamos falando de
uma ação do sujeito que considera o seu próprio desejo. Kehl (2002)
afirma que a Psicanálise não é apenas uma proposta ética, mas um saber de
dimensões humanistas que pode contribuir para a construção de uma ética mais
adequada às condições das sociedades contemporâneas, já que considera o sujeito
moderno em suas dimensões inseparáveis de conflito e liberdade, de solidão e
sociabilidade.
O que queremos trazer a reflexão é que
a ética do desejo (do intersexual) possa ser entendida como uma resistência à
crescente massificação de um discurso sob seu corpo e consequentemente sob sua
subjetividade. Que também se possa pensar uma ética como possibilidade de
reflexão, sobre a atuação dos profissionais envolvidos, na decisão de cirurgias
precoces de intersexuais. No que se refere à aplicação prática das cirurgias
precoces e seus efeitos produzidos ao longo do tempo, que não seja
caracterizado um esquecimento sistemático do “outro” que ali está. Que esse
sujeito (esse “outro”) também possa ter o direito de decidir sobre si a partir
de uma posição essencialmente ética, se dando essa oportunidade com a
possibilidade da não realização da cirurgia precoce nos casos possíveis, que
são a maioria.
Para uma ética responsável é
imprescindível garantir a liberdade de escolha do “outro”; é imprescindível
também, proteger o “outro” de ser reduzido ao “mesmo”. Em outras palavras, que
esse “outro” seja recebido em sua irredutível “estranheza”. A própria definição
de “sujeito ético” é que este deve “ser consciente de si e dos outros, isto é,
reconhecer as pessoas como sujeitos éticos também. É também ser livre, ou seja,
poder fazer de modo consciente e seguro suas escolhas, opções; sem sofrer
pressão externa.” Nossa reflexão lança base para uma compreensão do sujeito
intersexual baseada na responsabilidade ética, fazendo com que as pessoas se
sintam estimuladas a serem “melhores”, mais responsáveis, face a complexidade
da temática vigente.
Referências
KEHL, M. R. Sobre
ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MARTINS, A. Relações local-global nas
redes transdisciplinares: globalização e singularidade. Revista de Ciências
Humanas (UGF). Rio de Janeiro. 21(1): 47-72, 1998.
revistas.unipar.br/akropolis/article/download/2841/2109