sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

(Re)pensando o sexo: Mito, Religião, Ciência e as visões sociais contemporâneas:


Na mitologia grega, o mito de Hermaphroditos, Ἑρμάφρόδιτός, Deus grego filho de Hermes e Afrodite, traz a origem do termo adotado hoje para classificar comumente um tipo de ADS. Segundo esta história, o Deus grego, de beleza extrema, desperta o amor da ninfa Sálmacis que, tomada pelos seus sentimentos, uniu ambos os corpos em um só.



Salmacis e Hermaphoditos Bartholomeus Spranger (c.1598). 

No artigo O sexo dos Anjos, que você pode encontrar no fim desta postagem como recomendação de leitura, a autora Paula Sandrine também nos remete ao estudo de Mircea Eliade que, em seu livro “Mefistófeles e o Andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não europeus” traz a construção do Mito do andrógino, de Platão, por diversas culturas não ocidentais, de uma ideia divina da androginia e nos coloca uma possibilidade de pensar a variabilidade de sexos nos humanos como uma situação possível (Seriamos todos intersexuais? Leia aqui a entrevista com o Imunologista e Professor americano Gerald Callahan sobre esta proposição.)
Os chamados hermafroditas, ou qualquer outra pessoa com “deformidades” físicas, eram vistas, desde a Antiguidade, como essencialmente malígnas, ligados ao Satã e que precisavam ser mortas para não ameaçar o “frágil e constantemente ameaçado reino de Deus sobre a terra”  (LEITE, Jorge. 2009).
A visão do diabo também era associada a uma entidade dúbia, imprecisa, com seios femininos e pênis num só corpo, em oposição a ideia divina de clareza e precisão. É nesse sentido que formam-se as construções de cristo e dos anjos como quase assexuados, “pois o que importa são as sutilezas do espírito em manifestações de masculinidade ou feminilidade, enquanto o diabo e seus demônios tornam-se hipersexuados, focando na genitalidade corporal todo o desregramento cósmico da junção macho e fêmea.”.
Com o advento do iluminismo as diferenças entre o homem e a mulher caíram nos braços da ciência, ratificando a ideia dicotômica de sexo vigente até então e problematizando ainda mais a questão dos ADSs (antes chamados de “intersexs”). Passa-se a estudar as diferenças do cérebro masculino e feminino, como por exemplo uma maior atividade no lóbulo parietal inferior direito nos homens e o esquerdo nas mulheres (Sobre isso, leia “As diferenças encefálicas e níveis de atenção em homens e mulheres”). Diferenças hormonais também foram dicotomizadas, conheceu-se os efeitos da testosterona e relacionaram o nível de concentração deste, em homens e em mulheres, com seus comportamentos característicos. Deu-se nome, localizou-se no corpo, as principais diferenças comportamentais entre homens e mulheres e buscou-se “encaixar” os ADSs nas formas sociais aceitas, ou homem ou mulher.
 
“O homem vitruviano – Leonardo Da Vinci”

Por outro lado, há uma teoria conhecida como Queer, surgida na década de 80, que põe em cheque as formas de identidade humanas socialmente aceitas, dentre elas a ideia binária da condição humana- masculino/feminino- atribuindo uma condição cultural (e não natural) aos ideais de identidades sexuais, que produz um instrumento de poder sobre os corpos humanos, sejam estes os “normais” ou aqueles considerados patológicos, aqui se encaixando os intersexuais, por este binarismo e pelo discurso médico vigente, que justificam, dentre outras coisas, as intervenções cirúrgicas de adequação ao dimorfismo sexual. Contrariando este discurso médico de patologia dos indivíduos intersex e corroborando o discurso queer, CABRAL (2003) apud PINO (2007) nos diz que:
“A intersexualidade não é uma doença, mas uma condição de não conformidade física com os critérios culturalmente definidos de normalidade corporal”
É nesse sentido que nós podemos refletir criticamente, em princípio, sobre as decisões e discursos médicos de “readequação sexual”, através de intervenções cirúrgicas, não como saberes neutros e autônomos, isolados do contexto social, mas, pelo contrário, impregnados de ditames socialmente aceitos e normatizados do que vem a ser, além de tantos outros ditames sociais, homem e mulher. A teoria queer, nesse sentido, segundo PINO (2007):

“(...) Dispensa atenção aos indivíduos que não se conformam às regras e, portanto, vivem nas zonas de abjeção, lugares nos quais sua própria humanidade é contestada, exatamente por não corresponder aos ideais normativos do humano.”


Referências:
Castro Dutra Machado, Dionis de, Vale Bastos, Victor Hugo do, Porto Silva, Paulo Alberto, Fonseca de Andrade, Ubiratan, Silva, Júlio Guilherme, Furtado, Vernon, Ribeiro, Pedro. Diferenças sexuais encefálicas e níveis de atenção em homens e mulheresFitness & Performance Journal [On-line] 2005, 4 (Julio-Agosto) : [Data de consulta: 13 / diciembre / 2013] Disponível em:<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=75117035005> ISSN 1519-9088

MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Cad. Pagu [online]. 2005, n.24, pp. 249-281. ISSN 0104-8333.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332005000100012.


LEITE JR., Jorge. "Que nunca chegue o dia que irá nos separar": notas sobre epistémê arcaica, hermafroditas, andróginos, mutilados e suas (des)continuidades modernas. Cad. Pagu [online]. 2009, n.33, pp. 285-312. ISSN 0104-8333.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332009000200011.

PINO, Nádia Perez. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos. Cad. Pagu [online]. 2007, n.28 [cited  2013-12-13], pp. 149-174 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332007000100008&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-8333.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332007000100008.

Um comentário:

  1. Achei ótimo esse post. Certifiquem-se de que estão dando cota das "visões contemporâneas", que sugere a contemplação de uma totalidade, ou se estão tratando de algumas visões e de qual base epistemológica: psicanalítica, social, neurocientífica, etc A que se pensar, ok?

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