terça-feira, 26 de novembro de 2013

Documentário: Nem Homem, Nem Mulher

Documentário: Nem Homem, Nem Mulher





O documentário busca levantar questões sobre as chamada “anomalias de diferenciação sexual” (ADS), ele traz opiniões de especialistas na área, tão pouco conhecida, como a Dr. Lih-Mei Liao, Dr. Tiger Devor (PhD em Psicologia Cínica e terapeuta sexual) e a PhD em Psicologia Clínica Aileen Schalast.
Nele há uma preocupação memorável com os fatores sociais atrelados a anomalia e aborda bastante o fator rejeição social, porém não chega a ouvir opiniões de crianças a respeito dessa rejeição, mas consegue expor depoimentos emocionantes de intersexuais já adultos, relatos estes que abarcam principalmente a questão familiar, ou seja, de como uma família reage ao nascimento de um bebê intersexual.
Outro ponto é a  preocupação em apresentar depoimentos dos pais quanto a angústia destes, desde o momento do nascimento do bebê e leva em consideração a pressão social quanto a definição do sexo da criança, já que é clara a expectativa das pessoas ao redor da grávida  quanto a definição do sexo do bebê, pois antes mesmo de ele nascer, já se tem definido a cor do enxoval (Azul ou rosa) e os brinquedos já são comprados (Bola ou boneca).De um modo ou de outro a criança já nasce nesta dicotomia, homem/mulher (azul/rosa...)
Fora as questões sociais, o documentário também aborda questões fisiológicas, como a relação entre a anomalia e o nível de cortisol no organismo, a hiperplasia congênita e o nível de testosterona, assim como a maneira como o corpo reage a estes hormônios, incluindo, também, a análise das gônadas. Alem destas, outros parâmetros para classificação de um bebê naturalmente intersexual são fatores genéticos (análise cromossômica) e o caráter experimental e de previsibilidade (a respeito da escolha médica e familiar da genitália do bebê).
Esta investigação pode parecer completa e confiável, mas as síndromes não costumam ser tão simples, pelo contrário, em seu nível de complexidade e variabilidade acaba-se obtendo resultados de exames inconclusivos, sempre nos limites entre o masculino e o feminino, e se há variações, há também diferenças e estas diferenças vão aparecer principalmente no desenvolvimento sexual da criança.
O documentário aponta que, desde o seu nascimento, uma criança diagnosticada com alguma síndrome intersexual está sujeita a enfrentar inúmeros desafios pois, vários fatores de ordem médica e social incentivam um diagnóstico de gênero precoce, que em sua natureza está cercado de incertezas e pressões e elas acarretam consequências na identidade e no desenvolvimento dos portadores desta síndrome.
Fatores que justificam as práticas cirúrgicas em crianças intersexuais recém-nascidas são o fator cultural e a exigência legal presente nas sociedades. Os pais, que necessitam saber/enquadrar o seu filho como homem ou mulher para assim começar a trata-lo de acordo com um gênero, são os primeiros a sofrer com a situação. Não saber o que seu filho de fato “é” causa muito espanto e sofrimento a família que, além de responder as expectativas de todas as pessoas que o cercam com relação a “quem é seu filho”, ainda se veem pressionados legalmente a registrarem a criança em um dos referenciais que temos na sociedade como representação de gênero: “Homem ou mulher”.       Recentemente, na Alemanha, foi proposto uma mudança na lei que deixa em aberto a indefinição do sexo. (Sobre isto, clique aqui para ver a matéria completa).
É neste sentido que observamos o perigo que a exigência de se fazer uma cirurgia tão fundamental logo cedo em uma criança acarreta. Ao se fazer estes procedimentos cirúrgicos, muitos aspectos do desenvolvimento ainda não possuem uma previsibilidade clara. Num contexto onde exista uma linha tênue entre o feminino e o masculino, uma intervenção prematura pode custar caro.
Além disso, alguns especialistas veem esta prática cirúrgica como uma mutilação às crianças que, sendo obrigadas a se enquadrarem a um dos lados dos polos, são expostas a situações invasivas de procedimentos e assim conviverem com memórias infantis de dores em salas de hospitais sem saber o porquê, dificuldades em aceitar suas genitálias no futuro e a perda de tecidos sensitivos que atrapalham a possibilidade de relacionamentos saudáveis em seu futuro.
Avanços nos últimos dez anos da medicina fomentaram o tratamento destes pacientes com um trabalho multidisciplinar com foco diferenciado e acompanhamento psicológico das famílias como posteriormente dos próprios intersexuais tentando minimizar os efeitos negativos das cirurgias reparadoras de sexo, pois há muitos relatos de casos onde a pessoa se vê e comporta-se de forma oposta ao gênero escolhido nos seus primeiros dias de vida. Isso ocorre por conta das diferenças hormonais que, na segunda infância e na adolescência, fazem emergir mais um fator que coloca em questionamento os procedimentos médicos.
Ainda há muito a se discutir sobre esta dicotomia Prevenção médica X Consciência do paciente na definição dos casos de intersexualidade, pois de um lado há o argumento de que quanto mais cedo for diagnosticado o possível sexo melhor será para o desenvolvimento da identidade do paciente, mas do outro, argumenta que o corpo é do bebê e somente dele, e é ele quem terá de lidar com as consequências destes procedimentos. Uma proposta alternativa seria a de que os intersexuais se conhecessem primeiro antes de fazer qualquer procedimento cirúrgico.
Um aspecto importante abordado no documentário está no pensamento da criança que um dia chegará a fase adulta, pois neste momento, é comum que passe a dar mais importância e queira o bom funcionamene de sua genitália. A discussão toda gira em torno de um impasse: Deixar a criança intersexual crescer e decidir por si própria qual decisão tomar, adiando ações cirúrgicas e medicamentosas, poderia impossibilitar estas ações pelo atraso da decisão.
Pode-se tomar como exemplo o caso de uma garota que tem Hiperplasia Congênita da supra-renal e que não realizou a cirurgia reconstrutiva. Seu clítoris é saliente e possui sete centímetros, o que causa uma certa confusão a respeito de sua identidade pois seu órgão sexual se assemelha ao de um homem, porém ela se sente como mulher. O questionamento que fica é se tivessem feito a cirurgia antes, ainda numa fase inicial, conseguiriam contornar esses problemas? Porém, e se a jovem se reconhecesse como do sexo masculino?
Uma das síndromes envolvendo o gênero é conhecida por Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos. Para entender melhor sobre essa síndrome, cabe a reflexão sobre como se constitui, basicamente, a formação do gênero intra-ulterina. No início, a constituição cromossômica é a mesma para homens e mulheres, até que o cromossomo Y se manifesta e a partir daí formem-se os testículos a partir da gônada, que geram testosterona. E é a testosterona que, por sua vez,  vai gerar o hormônio que vai impedir a formação de estruturas femininas, dando condições para que se formem as estruturas externas, logo, um feto masculino não terá útero. Na falta do cromossomo Y, o feto produzirá um ovário, que vai produzir testosterona em baixos índices, formando então um corpo tipicamente feminino.
Na síndrome de insensibilidade aos andrógenos, o corpo não responde como se espera. Apesar de ter o cromossomo Y, gerar testículos e produzir testosterona, o corpo não vai absorver esse hormônio como deveria, adquirindo características femininas.
Uma questão relevante no caso dos intersexuais é que os pais têm dificuldade de contar e explicar – até mesmo por falta de mais informações – para seus filhos sobre sua formação biológica no que diz respeito ao sexo, e consequentemente que esse sujeito não teria uma identidade de gênero pré definida (definição esta, pautada nas sociedades vigentes). Não saber e nem poder se definir como homem ou mulher pode trazer um impacto no desenvolvimento psíquico, cognitivo, neuropsicológico, na construção de sentido e no processo de subjetivação que faz parte de um encadeamento na formação da personalidade de qualquer indivíduo que vive em um meio pautado por definições tal como a de gênero (homem/mulher).
Outra grande questão é que não se trata apenas da biologia do sujeito, e sim de como esse sujeito se sente e se percebe. O senso de si vai ser elaborado a partir da aquisição de sentidos sobre o próprio corpo, onde será envolvida uma dimensão pessoal que organiza e dá sentido as experiências tornando-as base para a configuração da identidade desse indivíduo (intersexual). Diante do comentado acima, poderíamos dizer que seria uma forma de violência o indivíduo intersexual não saber sobre si – visto que muitas das cirurgias reconstrutivas se dão logo na primeira infância – e poder também decidir sobre seu corpo. As instituições família e saúde parecem sustentar a visão do intersexo como doença e não como identidade, e ainda hoje a questão principal em relação à intersexualidade é a discriminação e estigma social. Em pleno século XXI seria um avanço pensar a intersexualidade como uma condição diferente e especial, mas não uma doença que precisa ser controlada e combatida, devendo ser compreendido em sua complexidade cultural.

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