Documentário: Nem Homem, Nem Mulher
O documentário
busca levantar questões sobre as chamada “anomalias de diferenciação sexual”
(ADS), ele traz opiniões de especialistas na área, tão pouco conhecida, como a
Dr. Lih-Mei Liao, Dr. Tiger Devor (PhD em Psicologia Cínica
e terapeuta sexual) e a PhD em Psicologia Clínica Aileen Schalast.
Nele há uma
preocupação memorável com os fatores sociais atrelados a anomalia e aborda
bastante o fator rejeição social, porém não chega a ouvir opiniões de crianças
a respeito dessa rejeição, mas consegue expor depoimentos emocionantes de
intersexuais já adultos, relatos estes que abarcam principalmente a questão
familiar, ou seja, de como uma família reage ao nascimento de um bebê
intersexual.
Outro ponto é
a preocupação em apresentar depoimentos
dos pais quanto a angústia destes, desde o momento do nascimento do bebê e leva
em consideração a pressão social quanto a definição do sexo da criança, já que
é clara a expectativa das pessoas ao redor da grávida quanto a definição do sexo do bebê, pois
antes mesmo de ele nascer, já se tem definido a cor do enxoval (Azul ou rosa) e
os brinquedos já são comprados (Bola ou boneca).De um modo ou de outro a
criança já nasce nesta dicotomia, homem/mulher (azul/rosa...)
Fora as
questões sociais, o documentário também aborda questões fisiológicas, como a
relação entre a anomalia e o nível de cortisol no organismo, a hiperplasia
congênita e o nível de testosterona, assim como a maneira como o corpo reage a
estes hormônios, incluindo, também, a análise das gônadas. Alem destas, outros
parâmetros para classificação de um bebê naturalmente intersexual são fatores
genéticos (análise cromossômica) e o caráter experimental e de previsibilidade
(a respeito da escolha médica e familiar da genitália do bebê).
Esta
investigação pode parecer completa e confiável, mas as síndromes não costumam
ser tão simples, pelo contrário, em seu nível de complexidade e variabilidade
acaba-se obtendo resultados de exames inconclusivos, sempre nos limites entre o
masculino e o feminino, e se há variações, há também diferenças e estas
diferenças vão aparecer principalmente no desenvolvimento sexual da criança.
O documentário
aponta que, desde o seu nascimento, uma criança diagnosticada com alguma
síndrome intersexual está sujeita a enfrentar inúmeros desafios pois, vários
fatores de ordem médica e social incentivam um diagnóstico de gênero precoce,
que em sua natureza está cercado de incertezas e pressões e elas acarretam
consequências na identidade e no desenvolvimento dos portadores desta síndrome.
Fatores que
justificam as práticas cirúrgicas em crianças intersexuais recém-nascidas são o
fator cultural e a exigência legal presente nas sociedades. Os pais, que
necessitam saber/enquadrar o seu filho como homem ou mulher para assim começar
a trata-lo de acordo com um gênero, são os primeiros a sofrer com a situação.
Não saber o que seu filho de fato “é” causa muito espanto e sofrimento a
família que, além de responder as expectativas de todas as pessoas que o cercam
com relação a “quem é seu filho”, ainda se veem pressionados legalmente a
registrarem a criança em um dos referenciais que temos na sociedade como
representação de gênero: “Homem ou mulher”. Recentemente, na Alemanha, foi proposto
uma mudança na lei que deixa em aberto a indefinição do sexo. (Sobre isto,
clique aqui para ver a matéria completa).
É neste
sentido que observamos o perigo que a exigência de se fazer uma cirurgia tão
fundamental logo cedo em uma criança acarreta. Ao se fazer estes procedimentos
cirúrgicos, muitos aspectos do desenvolvimento ainda não possuem uma
previsibilidade clara. Num contexto onde exista uma linha tênue entre o
feminino e o masculino, uma intervenção prematura pode custar caro.
Além disso,
alguns especialistas veem esta prática cirúrgica como uma mutilação às crianças
que, sendo obrigadas a se enquadrarem a um dos lados dos polos, são expostas a
situações invasivas de procedimentos e assim conviverem com memórias infantis
de dores em salas de hospitais sem saber o porquê, dificuldades em aceitar suas
genitálias no futuro e a perda de tecidos sensitivos que atrapalham a
possibilidade de relacionamentos saudáveis em seu futuro.
Avanços nos
últimos dez anos da medicina fomentaram o tratamento destes pacientes com um
trabalho multidisciplinar com foco diferenciado e acompanhamento psicológico
das famílias como posteriormente dos próprios intersexuais tentando minimizar
os efeitos negativos das cirurgias reparadoras de sexo, pois há muitos relatos
de casos onde a pessoa se vê e comporta-se de forma oposta ao gênero escolhido
nos seus primeiros dias de vida. Isso ocorre por conta das diferenças hormonais
que, na segunda infância e na adolescência, fazem emergir mais um fator que
coloca em questionamento os procedimentos médicos.
Ainda há muito
a se discutir sobre esta dicotomia Prevenção médica X Consciência do paciente
na definição dos casos de intersexualidade, pois de um lado há o argumento de
que quanto mais cedo for diagnosticado o possível sexo melhor será para o
desenvolvimento da identidade do paciente, mas do outro, argumenta que o corpo
é do bebê e somente dele, e é ele quem terá de lidar com as consequências
destes procedimentos. Uma proposta alternativa seria a de que os intersexuais
se conhecessem primeiro antes de fazer qualquer procedimento cirúrgico.
Um aspecto
importante abordado no documentário está no pensamento da criança que um dia
chegará a fase adulta, pois neste momento, é comum que passe a dar mais
importância e queira o bom funcionamene de sua genitália. A discussão toda gira
em torno de um impasse: Deixar a criança intersexual crescer e decidir por si
própria qual decisão tomar, adiando ações cirúrgicas e medicamentosas, poderia
impossibilitar estas ações pelo atraso da decisão.
Pode-se tomar
como exemplo o caso de uma garota que tem Hiperplasia Congênita da supra-renal
e que não realizou a cirurgia reconstrutiva. Seu clítoris é saliente e possui
sete centímetros, o que causa uma certa confusão a respeito de sua identidade
pois seu órgão sexual se assemelha ao de um homem, porém ela se sente como
mulher. O questionamento que fica é se tivessem feito a cirurgia antes, ainda
numa fase inicial, conseguiriam contornar esses problemas? Porém, e se a jovem
se reconhecesse como do sexo masculino?
Uma das
síndromes envolvendo o gênero é conhecida por Síndrome de Insensibilidade aos
Andrógenos. Para entender melhor sobre essa síndrome, cabe a reflexão sobre
como se constitui, basicamente, a formação do gênero intra-ulterina. No início,
a constituição cromossômica é a mesma para homens e mulheres, até que o
cromossomo Y se manifesta e a partir daí formem-se os testículos a partir da
gônada, que geram testosterona. E é a testosterona que, por sua vez, vai gerar o hormônio que vai impedir a
formação de estruturas femininas, dando condições para que se formem as
estruturas externas, logo, um feto masculino não terá útero. Na falta do
cromossomo Y, o feto produzirá um ovário, que vai produzir testosterona em
baixos índices, formando então um corpo tipicamente feminino.
Na síndrome de
insensibilidade aos andrógenos, o corpo não responde como se espera. Apesar de
ter o cromossomo Y, gerar testículos e produzir testosterona, o corpo não vai
absorver esse hormônio como deveria, adquirindo características femininas.
Uma questão
relevante no caso dos intersexuais é que os pais têm dificuldade de contar e
explicar – até mesmo por falta de mais informações – para seus filhos sobre sua
formação biológica no que diz respeito ao sexo, e consequentemente que esse
sujeito não teria uma identidade de gênero pré definida (definição esta,
pautada nas sociedades vigentes). Não saber e nem poder se definir como homem
ou mulher pode trazer um impacto no desenvolvimento psíquico, cognitivo,
neuropsicológico, na construção de sentido e no processo de subjetivação que
faz parte de um encadeamento na formação da personalidade de qualquer indivíduo
que vive em um meio pautado por definições tal como a de gênero (homem/mulher).
Outra grande
questão é que não se trata apenas da biologia do sujeito, e sim de como esse
sujeito se sente e se percebe. O senso de si vai ser elaborado a partir da
aquisição de sentidos sobre o próprio corpo, onde será envolvida uma dimensão
pessoal que organiza e dá sentido as experiências tornando-as base para a
configuração da identidade desse indivíduo (intersexual). Diante do comentado
acima, poderíamos dizer que seria uma forma de violência o indivíduo
intersexual não saber sobre si – visto que muitas das cirurgias reconstrutivas
se dão logo na primeira infância – e poder também decidir sobre seu corpo. As
instituições família e saúde parecem sustentar a visão do intersexo como doença
e não como identidade, e ainda hoje a questão principal em relação à
intersexualidade é a discriminação e estigma social. Em pleno século XXI seria
um avanço pensar a intersexualidade como uma condição diferente e especial, mas
não uma doença que precisa ser controlada e combatida, devendo ser compreendido
em sua complexidade cultural.