A questão da intersexualidade não se restringe apenas à classificação e
a dificuldade de precisar o sexo do indivíduo em termos do modelo dicotômico
Homem/Mulher. O sexo biológico é considerado a primeira manifestação de
identidade do ser, mas não é a única. Saber se o indivíduo é menino ou menina
implica em uma determinação de um caminho a ser traçado ao longo de sua vida, e
este caminho será preenchido por escolhas, comportamentos e significações
“pré-selecionadas” socialmente a partir daquele ultimatum inicial do
sexo biológico.
É menino ou menina? Fonte: Google imagens |
Ao se determinar o sexo de um indivíduo intersexual, por decisão médica
e familiar que culminam numa intervenção cirúrgica de definição sexual, se
determina também uma identidade compátivel de subgrupo que compartilha das
características gerais daquele sexo biológico.Como afirma Judith Butler
(2003:37) apud Pino (2007):
“É a marca do gênero que atribui
existência significável para os sujeitos, qualificando-os para a vida no
interior da inteligibilidade cultural. A marca do gênero qualifica os sujeitos
e lhes confere reconhecimento como humanos e, ainda, é a nossa identidade
primeira.”
Fonte: Google imagens |
É nesse sentido que, ao determinar se o indivíduo intersexual é homem ou mulher, determina-se também seu gênero como sendo o de masculino e feminino, respectivamente. Um fato curioso trazido por Pino (2007) no artigo “A teoria queer e os intersex” é que na maioria dos casos de intervenção cirurgica dos indivíduos intersexuais, “criam-se” corpos femininos, pois estes são mais “passivos”, diferentemente dos corpos masculinos pois, como afirmam Cabral e Benzur ( (Citados no mesmo artigo) “Criar um órgão como o pênis que possa vir a não desempenhar a funcionalidade e os atributos da masculinidade é mais complicado para a ordem cultural e social.”
Além disso, na determinação cirúrgica do sexo do intersexual, os
objetivos para se “criar” um corpo feminino não são os mesmos para o masculino.
Pino(2007) coloca que “aos homens preserva-se primeiramente a sexualidade
heterossexual e para as mulheres se preserva a reprodução e a maternidade.”.
Esses fatores reafirmam os lugares de cada gênero na sociedade.
A questão da orientação sexual também está fortemente associada a essa
determinação do sexo biológico do sujeito intersexual. Segundo a autora de “O
sexo dos anjos”, Paula Sandrine Machado, há uma preocupação maior de médicos e
da sociedade em geral à futura masculinidade do paciente operado, e isso inclui
a sua heterossexualidade garantida. Essa preocupação não é tão frequente para
os casos de pacientes mulheres, contudo permanece para ambos a necessidade de
compatibilidade entre o sexo designado pelos médicos e a identidade de gênero
correspondente. Pino (2007) traz que:
“A medicina não é a
grande vilã da história, antes, é parte da ordem social que exige que as
pessoas tenham um sexo verdadeiro – homem-masculino e mulher-feminina – e que
essa verdade esteja sinalizada no corpo. A anatomia ainda funciona como o lugar
primário para anunciar a verdade dos sujeitos.”
Cabe aqui o questionamento acerca dessa ideia difundida de
“naturalização” da compatibilidade sexo biológico-gênero-orientação
heterossexual. Poderíamos ir um pouco mais longe a partir desta última
ideia: Acreditar que ter uma não compatibilidade entre estes três conceitos
fundamentais (um homem que possui identidade de gênero feminina; uma mulher que
se sente atraída por mulheres etc.) foge do comumente aceito por “ordem natural
das coisas” poderiam ser argumentos considerados válidos para justificar muitas
condutas intolerantes, preconceituosas e discriminatórias (como exemplos, a
transfobia e homofobia - sobre isso, clique aqui para ver os dados de violência
homofóbica no Brasil no ano de 2012). Além disso, considerar uma única
forma de identidade humana como correta, tendo em vista a pluralidade cultural,
as experiências individuais, as influências e as singularidades de cada um,
limita-se drasticamente estas inúmeras possibilidades e realidades humanas
existentes, desconsiderando-as como também naturais, o que é algo que por si só
já cobra um profundo senso crítico e questionador.
Poderíamos, portanto, pensar a independência entre esses três fatores
que compõem nosso “cartão de visita” como naturalmente possível? E, trazendo
nossa atenção a questão dos intersexuais, seria o caso de se pensar mais
criticamente acerca das determinações médicas de constituição do sujeito
intersexual, levando em conta a compatibilidade do sexo construído
cirurgicamente com identidades de gênero e de orientação sexual consideradas
“ideais”, sem a possibilidade de construção subjetiva e de livre escolha
do próprio sujeito? Fica a nossa sugestão.
Em breve faremos mais postagens a respeito das temáticas envolvendo a
sexualidade em seus mais variados contextos dentro do mundo intersexual, com as
contribuições de diferentes perspectivas teóricas da Psicologia.
Referência:
Pino, Nádia
Perez. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos
des-feitos. Cad. Pagu, Jun 2007, no.28, p.149-174.
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